A semente do Liberalismo Teológico contra a Doutrina das Escrituras em nosso tempo
“há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles... acautelai-vos; não suceda que, arrastados pelo erro desses insubordinados, descaiais da vossa própria firmeza”.
2ª Pedro 3.16b-17
Recentemente temos visto um ressurgimento da Teologia Liberal. Especialmente por afirmações a respeito das Escrituras Sagradas feitas por alguns pastores. Percebemos neles um anseio por quê as Escrituras sejam vistas com um olhar mais afinado com as expectativas culturais da nossa época, e não tanto com o caráter dogmático que é natural à Teologia Reformada.
Neste sentido podemos referir à mensagem recente do pastor batista Ed René Kivitz, que ganhou destaque nas redes sociais e no debate público. Na ocasião ele discorria sobre a Carta de Paulo a Filemom, onde Paulo diz que o cristão Filemom deveria receber seu escravo fugitivo de volta, como um irmão em Cristo. E, da mesma forma, orienta ao escravo fugitivo, Onésimo, que considerasse Filemom como um irmão.
Diante deste quadro dissonante do paradigma de sociedade em que vivemos, Ed René passa a analisar como nós, cristãos do século 21, deveríamos reinterpretar as Escrituras. A proposição final de Ed René, no intuito de harmonizar o ensino da Bíblia na missão da Igreja em nossos dias com as expectativas culturais contrárias às Escrituras, é de que algumas coisas precisam de atualização, de modo que as questões atuais não sejam mais tratadas sob os mesmos princípios que foram usados para tratar de tais questões (ou de questões do mesmo tipo) em outros momentos da história.
O problema de tal proposição
Essencialmente, o que Ed René propõe é rejeitar algumas coisas da Bíblia em favor do bem-estar psicológico do mundo atual. Trata-se de fazer certas partes serem reinterpretadas, provavelmente colocando o custo de suas afirmações na conta de contextos culturais muito específico daquela época e que não serve mais para os nossos dias.
O método liberal reside basicamente na definição de coisas que eles aceitam, e coisas que não admitem. E o que fazer com as coisas que não admitem? A isso aplicam o conceito de “ressignificação”. Ed René, inclusive, menciona isso em sua mensagem.
Na prática isso significa basicamente que o homem é quem julga as Escrituras, e não o contrário. Ou seja, nem tudo que está no texto bíblico pode ser visto por nós com bons olhos. Precisamos filtrar algumas coisas, e o filtro é a experiência humana. A partir desta convicção, os liberais vão olhar para as situações práticas e, a partir destes quadros, vão relativizar o ensino das Escrituras como melhor lhes parecer.
Em outras palavras:
Enquanto um Teólogo Reformado julga a situação da humanidade à luz das Escrituras, partindo do ensino bíblico para o problema humano; o Liberal trilha um caminho contrário, partindo da experiência humana para julgar o que é correto e o que não podemos mais aceitar, independentemente de estar claramente afirmado nas Escrituras.
Em geral, essa mentalidade lembra muito o que ocorreu na história do herege Marcião.
Por que os Liberais rejeitam certas partes das Escrituras?
Esta pergunta pode parecer bem complicada de se responder. Mas eu a vejo como algo bastante simples.
A razão por que eles rejeitam certas partes das Escrituras é determinação da experiência humana como autoridade máxima.
Em suma, eles não admitem a Bíblia como a autoridade máxima. O que temos aqui é a negação da Doutrina Reformada das Escrituras.
Vale lembrar que, historicamente, o liberalismo teológico surge de uma tendência do período do Iluminismo, quando o materialismo, o naturalismo e o cientificismo dominaram o cenário filosófico, fazendo pesadas críticas ao sobrenaturalismo bíblico, e levando muitos teólogos a tentar resolver o problema, ressignificando as expressões bíblicas, e por fim, até mesmo negando os milagres registrados nas Escrituras, a fim de acomodar o texto bíblico ao melhor conforto possível para os incrédulos. O que sobrou? Uma religião “semi-verdadeira”, portanto, totalmente FALSA, que mantinha apenas certos aspectos de ética e moral cristãos.
Assim, para um teólogo Liberal: a Bíblia é apenas mais um, de muitos instrumentos de interlocução humana, que formam o diálogo construtivo de uma humanidade mais elevada, mais evoluída, e autoglorificada em seus próprios termos. Não é a PALAVRA DE DEUS, é uma experiência religiosa a ser considerada. Neste sentido, a Bíblia não é inerrante (no sentido que não comete equívocos naquilo que afirma), não é infalível (no sentido que tudo o que ela diz irá se cumprir perfeitamente), nem é suficiente (no sentido que ela não precisa de acréscimos ou complementos). Para eles, a Bíblia pode errar, e realmente contém erros; provavelmente pode vir a falhar; e certamente não é suficiente. Ela é apenas mais um documento, embora muitíssimo valioso, para o nosso debate e edificação humanitária e social. A experiência humana sempre é a regra absoluta.
Devemos observar que os adeptos desta linha trazem contribuições válidas no campo moral e ético. O liberalismo ganha adeptos exatamente por este ponto. Como dissemos não usam apenas enganos, mas a verdade com erros, misturados. Geralmente abraçam o que há de mais simpático na instrução bíblica, e rejeitam o que julgam não ser palatável à liberdade humana (no sentido de dar vazão às pulsões do homem – inclusive as pecaminosas).
Ed René, em sua pregação, fala coisas boas no aspecto moral, que qualquer cristão poderia concordar. Ele preza pela justiça social, pelo bem-estar do próximo – cosias que deveríamos nos esforçar para promover dentro de nossa capacidade. É verdade, podemos concordar com estas coisas. O problema é que fica só nisso. A partir daí, tudo é um subterfúgio para atingir fatalmente os conceitos bíblicos com os quais não concordam.
Veja que ele começa com um apelo pelo bem-estar do próximo, e logo passa para uma discussão sobre as declarações bíblicas de que o homossexualismo é algo abominável. E ele faz isso como se estas duas cosias fizessem parte do mesmo cenário. Isso acaba pegando as pessoas desprevenidas. Elas estão ouvindo a mensagem e concordando que, como discípulos de Cristo, precisamos trabalhar pelo bem do próximo. Então, ele vira para o problema da Ideologia de Gênero, dizendo que o que a Bíblia diz sobre o pecado que praticam precisa ser reavaliado, pois não será possível garantir que eles se sintam confortáveis com a Igreja se continuarmos pregando sobre seu pecado a partir do que a Bíblia diz.
Neste ponto fica claro que:
O mais importante para o teólogo liberal não é mostrar ao homem caído e distante de Deus que ele é um pecador que precisa da obra de Cristo, e que precisa se arrepender dos seus pecados e se tornar um discípulo de Jesus.
Para eles, o importante é fazer com que o homem que está longe de Deus se sinta confortável com a Igreja, sem precisar passar pelo incômodo da conversão (se é que ainda acreditam nisso), pois o importante é o amor (que nesse caso é a mera capacidade de parar de se condoer com a miséria do pecado que domina o coração do homem caído, aceitando todo tipo de expressão da corrupção humana sem fazer críticas).
O "cristão sofisticado", na visão liberal, é porta-voz de uma Bíblia atualizada, e aprendeu a relevar o pecado e não se preocupa em ver a Igreja santificada, pois querer isso seria um verdadeiro estorvo à liberdade alheia, de ser o que quiser, mesmo que seja pecado na declaração do próprio Deus.
Do ponto de vista da pregação liberal, seria um equívoco pensar que tais pessoas não podem estar num verdadeiro relacionamento com Deus somente por desejarem manter sua vida de pecados abomináveis, em paz, sem nunca dar razão à Palavra de Deus. Sim, para tais pregadores, seria um grande preconceito pensar que as pessoas não podem ser templo do Espírito Santo, só porque nunca se incomodam com os pecados que praticam como modo de vida.
Num cenário filosófico e psicológico como este, criado pelos teólogos liberais, não há espaço para as afirmações que visem à desistência humana da própria vontade por causa da Palavra de Deus (exceto aquilo que no campo ético vise ao bem comum, o que soa muito agradável ao ouvido liberal); o que se propõe, isso sim, é que desistamos de nutrir expectativas de ver a mudança de vida dos pecadores – isso seria falta de acolhimento e intolerância.
Neste cenário sobra pouco espaço para as afirmações de João em sua Primeira Carta:
1.5b-6: “Deus é luz, e não há nele treva nenhuma. Se dissermos que mantemos comunhão com Ele e andarmos nas trevas, mentimos e não praticamos a verdade.”.
2.4-6: “Aquele que diz: Eu o conheço e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade... Nisto sabemos que estamos nele: aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou.”.
2.15-16: “Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele; porque tudo que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não procede do Pai, mas procede do mundo.”.
3.3-6: “E a si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro... Todo aquele que permanece nele não vive pecando; todo aquele que vive pecando não o viu, nem o conheceu.”.
Também não há espaços para as afirmações de Paulo na mesma direção:
1ª Coríntios 6.9-11: “Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis: nem impuros, nem idólatras, nem adúlteros, nem efeminados, nem sodomitas, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o reino de Deus. Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus.”.
Gálatas 5.16-21: “Digo, porém: andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer... Ora as obras da carne são conhecidas e são: prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias e coisas semelhantes a estas, a respeito das quais eu vos declaro, como já, outrora, vos preveni, que não herdarão o reino de Deus os que tais coisas praticam.”.
Gálatas 5.24: “E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências.”.
Colossenses 3.5-6: “Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria; por estas coisas é que vem a ira de Deus sobre os filhos da desobediência.”.
Ou ainda, as palavras do próprio Senhor Jesus Cristo:
João 8.11b: “Então, lhe disse Jesus: Nem eu tampouco te condeno; vai e não peques mais.”.
Qual a resposta biblicamente coerente a isso?
Primeiramente, devemos considerar o que Paulo diz a Timóteo quando prenuncia que nos últimos dias os homens se tornariam mais e mais perversos e avessos à Palavra de Deus. Ele diz a Timóteo que ele deveria permanecer no que aprendeu, e que pode tornar sábio para a salvação: nas Escrituras. As razões de Paulo são poderosas: 1) Elas são inspiradas por Deus; 2) Elas são úteis para o ensino da verdade, para a repreensão dos que trilham caminhos maus, para a correção do caminho do homem, e para a educação na justiça; 3) Elas dão ao homem uma nova vida, onde está apto para servir a Deus e fazer a vontade d’Ele (2ª Timóteo 3.14-17).
Não devemos dar ouvidos às vozes que se levantam vez por outra na história, quando homens clamam pela deposição da Bíblia de seu lugar e de sua autoridade, como Palavra de Deus. Este clamor não é novo. E sempre surge a partir da consideração de que o homem, se der ouvidos às Escrituras, terá que abrir mão de coisas que gostaria muito de manter. E por que este homem simplesmente não dá razão à Bíblia? A resposta é simples: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1ª Coríntios 2.14). Este homem não segue a Palavra, e não irá aceitá-la, pois o seu coração é antagônico ao próprio Deus. Nesse caso, não adianta tentar tornar as instruções bíblicas mais simpáticas ao mundo caído. Isso só produz uma coisa: Uma religião falsa que não é cristianismo.
Vale lembrar as palavras de Pedro ao citar os que deturpavam as Cartas de Paulo. Ali ele adverte aos crentes sobre sua firmeza em santidade, aguardando o dia da volta do Senhor e lembra que devem também se consolar com a certeza da graça de Deus, como é costume de Paulo escrever em suas cartas. Nisso, Pedro observa que muitos têm errado e distorcido as palavras de Paulo, produzindo enganos, aos quais fiéis não deviam seguir:
2ª Pedro 3.14-18: Por essa razão, pois, amados, esperando estas coisas, empenhai-vos por serdes achados por ele em paz, sem mácula e irrepreensíveis, e tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles. Vós, pois, amados, prevenidos como estais de antemão, acautelai-vos; não suceda que, arrastados pelo erro desses insubordinados, descaiais da vossa própria firmeza; antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno.
À Palavra de Deus nada se acrescentará em tempo algum. Nem se retirará algo dela. É crítica a passagem de Apocalipse quanto à seriedade da Revelação dada pelo Senhor a João, e vale lembrá-la aqui: “Eu, a todo aquele que ouve as palavras da profecia deste livro, testifico: Se alguém lhes fizer qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará os flagelos escritos neste livro; e, se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus tirará a sua parte da árvore da vida, da cidade santa e das coisas que se acham escritas neste livro. Aquele que dá testemunho destas coisas diz: Certamente, venho sem demora. Amém! Vem, Senhor Jesus!” (22.18-20).
Para avaliar o Liberalismo Teológico, seus problemas e uma confrontação do mesmo, recomendamos:
Cristianismo e Liberalismo, de John Gresham Machen